Uma polifonia particular

Foi com muita alegria e emoção que participei dos concertos de Natal do Ars Nova em 2019, para comemorar seus 60 anos! Hoje sou professor da UFMG, já perto da aposentadoria… Mas minha história com o Ars Nova vem de longa data. De quando eu ainda era um calouro no curso de Psicologia da UFMG!

Quando passei no vestibular, em 1983, tudo era mágico para mim. A Universidade oferecia uma infinidade de possibilidades acadêmicas. Professores excelentes, laboratórios de qualidade, pesquisas de ponta sendo realizadas. Mergulhei de cabeça na Universidade. Naquele momento, eu ainda não sabia que nunca mais sairia do universo maravilhoso da academia e da pesquisa científica. 

Além dos aspectos acadêmicos, a entrada na Universidade permitiu que eu tivesse uma das experiências culturais mais marcantes da minha vida. Uma experiência musical do mais alto nível. Logo que me matriculei como estudante universitário, aos 18 anos, fiz o teste para cantor do Ars Nova. O processo era dificílimo e composto de várias e exaustivas fases. Quem passava pelas primeiras etapas era convidado para um estágio de três meses, seguido de um teste público, em quarteto a cappella, na frente dos colegas. Com as pernas bambas fui até o fim. Passei em todas as provas, fui admitido no Coral e, poucos meses depois, estava viajando pela Europa com o grupo. 

O coral Ars Nova foi uma experiência mágica para mim e que coincidiu com os cinco anos da graduação em Psicologia. Desde os primeiros anos da escolarização eu me encantei pela música coral. Cantei no Coral Prof. Guilherme de Azevedo Lage, do Colégio Municipal de Belo Horizonte. Em uma época que, infelizmente, já ficou para trás, na qual a educação pública era de extrema qualidade. Mas cantar no Ars Nova, que era considerado pela crítica especializada como um dos melhores corais do Brasil e, sem risco de ser bairrista, um dos melhores do mundo, era uma aventura quase impensável.

Tive esse privilégio de participar do grupo, em um de seus momentos mais exuberantes e de reconhecimento internacional. A lista de prêmios e de apresentações de gala que contabilizei cantando no Ars Nova é extensa. Em 1985, por exemplo, vencemos dois dos principais concursos internacionais, um na Suíça e outro na Espanha. 

Festival Internacional de Música de Cantonigrós, Espanha, 1985

A fruição estética em cada ensaio e em cada apresentação do coral foi muito marcante e tenho lembranças vívidas. Mas, só hoje, muitos anos depois, é que consigo perceber outra marca deixada pelo coral em mim: a experiência da polifonia. 

Cantando no Ars Nova desenvolvi o espírito de produção coletiva e colaborativa que atravessa toda a minha vida acadêmica e tem um valor significativo sobre ela. Durante os ensaios e as apresentações, eu me sentia cada vez mais estimulado pelos desafios de harmonizar as melodias em função daquela variedade de vozes que estava presente no coro. O exercício corporal da polifonia. De origem grega, o termo significa múltiplos sons organizados simultaneamente. É um conceito caro à música, mas que tem sido apropriado por diferentes campos como a linguística, o teatro e até mesmo a Psicologia. A definição foi usada por Mikhail Bakhtin, em 1929, em sua análise da obra poética de Dostoiéviski. Também é abordado por vários intelectuais do final do século XX e que exerceram influência na Psicologia e, por extensão, sobre a minha própria formação, como o francês Jacques Lacan nas discussões sobre os conceitos de significado e significante.

Utilizo essa reflexão sobre a polifonia porque, como disse, é um conceito que atravessa não apenas minha formação em Psicologia, mas toda minha atuação profissional. 

Uma das minhas atribuições, como professor e pesquisador da UFMG, é publicar artigos em revistas científicas, livros e capítulos de livros. Em poucas palavras, é uma das formas que a Universidade tem para devolver à sociedade parte dos investimentos feitos com o dinheiro público. Pois bem, muito recentemente observei que das mais de 70 publicações que fiz ao longo da minha carreira, mais de 90% delas foi em coautoria, ou seja, em colaboração com outros autores. É nesse ponto que retomo a importância que a experiência polifônica teve em minha carreira e em muitos dos traços profissionais que desenvolvi. Tenho consciência de que vários dos textos que publiquei eu poderia ter feito sozinho, sem a participação de outros autores. Mas é esse germe da polifonia, que foi tão bem cultivado no Ars Nova, que vem à tona! É como se houvesse uma necessidade interior, pulsante, de que o diálogo de múltiplas vozes seja concretizado em uma obra só. Uma necessidade polifônica…

Por essas e outras, sou eternamente grato ao Ars Nova!

Sérgio Cirino, baixo
(1984 – 1988)

Belo Horizonte, 18 de junho de 2020