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Harmonia I

aula 04 - harmonia tonal em perspectiva crítica

José Henrique Padovani

tópicos: [aula 4]

1. introdução: ou, “o que essa aula está fazendo aqui?”
2. Colombo e o “outro”
3. a teoria musical e a harmonia dos Kaluli
4. organização das alturas em algumas culturas africanas
5. conclusão: harmonia, Agawu (“Tonalismo como força colonizadora...”) e Benjamin

1. introdução: ou, “o que essa aula está fazendo aqui?”

Propósito geral: pensar (sonhar?) em um aprendizado “não complacente” de harmonia tonal...

i.e.: um aprendizado que se questione sobre a centralidade que ainda hoje o tonalismo ocupa no nosso aprendizado musical.

Tonalismo: “...sistema hierarquicamente organizado de relações entre alturas movidas por desejos semitonais”
(AGAWU, K.; O tonalismo como força colonizadora na África)

Definição de outras músicas, não tonais, segue muitas vezes um critério negativo ou referencial – i.e.: que se define a partir do tonalismo (e não por uma especificidade particular):

atonal; não-tonal; pan-tonal; pós-tonal: negação, extrapolação ou sucessão do tonalismo

modalismo: permite categorizar como comuns, a partir de um termo relacionado à música ocidental pré-tonal, músicais as mais diversas a partir da conjectura, nem sempre factual, de que essas músicas têm um princípio “escalar”/“modal” estruturante

Em resumo: o que permite, epistemologicamente, que se contraponha com tanta naturalidade 300 anos de música europeia (e das músicas decorrentes desse período/espaço tão restrito) e todas as outras músicas, de tantos tempos e espaços diferentes.

2. Colombo e o “outro”

Tzvetan Todorov, A Conquista da América: A questão do “outro” (1982): toma esse fato histórico tão emblemático para abordar o a questão da alteridade: a noção/concepção que se tem do “outro”.

Colombo sabe perfeitamente que as ilhas já tem nome, de uma certa forma, nomes naturais (mas em outra acepção do termo); as palavras dos outros, entretanto, não lhe interessam muito, e ele quer rebatizar os lugares em função do lugar que ocupam em sua descoberta, dar-lhes nomes justos; a nomeação, além disso, equivale a tomar posse.
Aqui está um episódio significativo, uma espécie de paródia do trabalho etnográfico: tendo aprendido o vocábulo indígena “cacique”, [Colombo] preocupa-se menos em saber o que [a palavra] significa na hierarquia, convencional e relativa, dos índios, do que em ver a que palavra espanhola corresponde exatamente, como se fosse óbvio que os índios estabelecem as mesmas distinções que os espanhóis (...). Colombo não duvida nem por um segundo de que os índios, como os espanhóis, distinguem entre fidalgo, governador, e juiz; sua curiosidade limita-se ao exato equivalente indígena destes termos.
Colombo aceita a autoridade do astrônomo árabe Alfragamus [Al Farghani], que indica com bastante correção a circunferência da Terra, mas exprime-a em milhas árabes, em um terço superiores às milhas italianas, a que Colombo está acostumado. Este não pode conceber que as medidas sejam convenções, que o mesmo termo tenha significados diferentes segundo as diferentes tradições (ou línguas, ou contextos); traduz então em milhas italianas. (...) Colombo não reconhece a diversidade das línguas e, por isso, quando se vê diante de uma língua estrangeira, só há dois comportamentos possíveis, e complementares: reconhecer que é uma língua, e recusar-se a aceitar que seja diferente, ou então reconhecer a diferença, e recusar-se a admitir que seja uma língua.

TODOROV, Tzvetan. “A Conquista da América: A questão do ‘outro’.

3. a teoria musical e a harmonia dos Kaluli

artigo: “Flow like a waterfall”: the metaphors of Kaluli Musical Theory, de Steven Feld

temas do texto: como codificamos um vocabulário musical em um léxico que nos permite compartilhar socialmente discursos e narrativas sobre a música

como isso é feito a partir de metáforas

3. a teoria musical e a harmonia dos Kaluli [2]

1a parte: questão geral de como uma teoria estabelece esse léxico comum por meio das metáforas

2a parte: aborda mais concretamente como os Kaluli compreendem alguns aspectos da sua música

Gisalo: cerimônias Kaluli que, segundo Feld, têm o propósito de “tornar os participantes nostálgicos, reflexivos e sentimentais”.

muni (Ptilinopus pulchellus) ou Pomba-de-fruta-da-barriga-laranja

[escute outras gravações do canto do pássaro nesse link: https://www.xeno-canto.org/species/Ptilinopus-pulchellus?view=3 ]
3. a teoria musical e a harmonia dos Kaluli [3]

termos musicais dos Kaluli

gese: 2a M descendente
sa: 3a M descendente

sa: é também “cachoeira”
sagu: som da “cachoeira”; mas também: “descer a um centro tonal”
sagulu: centro tonal sustentado
gulu: onomatopeia para o som da queda de água contínua
sagulab [verbo]: cantar uma linha que se move e desce a um centro tonal


FELD, Steven. 'Flow like a Waterfall': The Metaphors of Kaluli Musical Theory. [1981: p.30]
3. a teoria musical e a harmonia dos Kaluli [4]
Para sumarizar, há nove termos básicos na terminologia Kaluli para intervalos e contornos melódicos do gisalo. Dois deles dão nome a intervalos específicos, e dois outros descrevem a duração e o movimento em direção a um centro tonal. Os outros cinco descrevem padrões de movimento melódico descendente, “nivelado” e ascendente. Onde os intervalos não são especificamente nomeados, eles são incluidos explicitamente nos rótulos dados ao contexto / contorno maior nos quais são encontrados.
FELD, Steven. 'Flow like a Waterfall': The Metaphors of Kaluli Musical Theory. [1981: p.32]

tiab: quase cânone... as vozes do coro parecem reverber a voz principal

quando Feld sugere que as demais vozes “seguem aquela principal”:

...meus amigos Kaluli riram e disseram que uma música não é algo que “segue”; é algo que se eleva [lifts up over], dispondo camadas sonoras acima e no meio umas das outras.
FELD, Steven. 'Flow like a Waterfall': The Metaphors of Kaluli Musical Theory. [1981: p.35]
3. a teoria musical e a harmonia dos Kaluli [5]

4. organização das alturas em algumas culturas africanas

artigo: African tone-systems: a reassessment, de Gerhard Kubik.

Entre os Mpyemõ, que ocupam a região sudoeste da República Centro-Africana, as notas do xilofone também são conceptualizadas como sendo os membros da família. Maurice Sjenda me surpreendeu uma vez em uma viagem de campo conjunta à sua área natal quando ele representou as notas a partir de posições da mão. Primeiro ele suspendeu a palma da sua mão direita logo acima do chão e me explicou que isso representava o tamanho da nota, que ele então tocou no kembe (lamelofone) [tipo geral de nome dado a instrumentos como kalimbas e mbrias]; era uma nota aguda. Então ele moveu sua mão aberta gradualmente ao alto, para longe do chão, tocando, ao mesmo tempo, notas cada vez mais graves com o polegar da outra mão. “Pode-se representar o tamanho da criança com as mesmas posições da mão”. As posições da mão, quando moviam para cima, significavam um aumento do tamanho da criança quando ela se torna mais velha. Nesse caso, se referiam à notas do kembe. O conceito de notas de frequências altas como pequeno e de frequências baixas como grande é bastante comum na África e foi pela primeira vez observado por Hugh Tracey. Ele se reflete na terminologia musical de numerosas línguas africanas.
KUBIR, Gerhard. African Tone-Systems: A Reassessment. [1985: p. 32]

conceitos usados para representar notas: “altura” (nós) X “tamanho” (Mpyemõ)

4. organização das alturas em algumas culturas africanas [2]

afinações

várias culturas usam afinações equi-heptatônicas (ca. 110 cents por intervalo) e equi-pentatônicas (240 cents)

tendência em não escutar ou “corrigir” afinações estrangeiras:

Um sistema de alturas inculturado está tão profundamente gravado na mente de um indivíduo que é inevitavelmente projetado em estímulos externos tal como se fossem reflexos condicionados. Constantemente interpretamos o mundo acústico externo a partir do ângulo de nosso sistema de tons aculturados, ajustando ou “corrigindo” os estímulos recebidos para que se conformem aos padrões esperados. Os hábitos de escuta no campo dos sistemas de tons e escalas são provavelmente irreversíveis ou, pelo menos, difíceis de modificar depois da adolescência. É possível mostrar experimentalmente que as pessoas educadas nas tradições musicais ocidentais inevitavelmente ouvem afinações equi-heptatônicas africanas em aproximação a um dos modos diatônicos ocidentais. KUBIK, Gerhard. African Tone-Systems: A Reassessment. [1985: p. 46]
4. organização das alturas em algumas culturas africanas [3]

influências coloniais em referências / sistemas de afinação

adoção do diapasão em Lá = 440Hz entre os Bakongo

equiparação de escalas equi-pentatônicas a escalas ocidentais baseadas em afinação igual:

A internalização das normas coloniais na música tem sido o destino de um grande número de músicos africanos educados no Ocidente. Durante minha primeira estada em Uganda, em 1959/60, fui uma vez hóspede de George Kakoma. Quando começamos a discutir a “escala Kiganda”, ele repentinamente tocou para mim a versão amadinda da famosa harpa “Olutali olw'e Nsinsi” (A batalha de Nsinsi) com as mãos cruzadas nas teclas pretas de seu piano. Com a mão direita, ele tocou a parte okunaga em oitavas paralelas e com a esquerda a parte okwawula entrelaçada. Então ele me disse que a “escala de Kiganda” era igual às notas pretas do piano. Fiquei muito surpreso na hora, pois contrariava toda a minha experiência com os instrumentos do meu professor, Evaristo Muyinda. Eu não sei como George Kakoma reagiria hoje em relação a este assunto. Embora haja uma ampla margem de tolerância na afinação – devido à presença de concepções consonantais baseadas em quartas – o sistema de tons de Kiganda é baseado no uso de um intervalo padrão médio de aproximadamente 240 cents. Será que a diferença de 60 cents entre esse intervalo equipentatônico e uma terça menor europeia (300 cents) era tolerada na época de Kakoma, por Bagandas educados em música ocidental?
KUBIK, Gerhard. African Tone-Systems: A Reassessment. [1985: p. 53]

5. conclusão: harmonia, Agawu (“Tonalismo como força colonizadora...”) e Benjamin

artigo: O tonalismo como força colonizadora da África, Kofi Agawu

tonalismo: não apenas uma lógica musical/harmônica ocidental baseada na administração do “desejo semitonal” (das tensões e resoluções)

tonalismo: é também a imposição de um aspecto musical de uma cultura dominante (tal como acontece com as línguas, com as vestimentas, modos de troca de mercadorias, etc.)

espécie de “idioma musical” a ser aprendido por aqueles que querem dialogar com o colonizador sendo considerados por eles, o que inclui não apenas a sintaxe harmônica baseada na administração de “desejos semitonais” mas, também, os os sistemas de afinação, as metáforas que usamos pra descrever linguisticamente elementos da música, os instrumentos, timbres e modos de emissão vocal que aprendemos e ensinamos como belos, interessantes, etc.

5. conclusão: harmonia, Agawu (“Tonalismo como força colonizadora...”) e Benjamin [2]




[OBS! OUTRO HINO]
5. conclusão: harmonia, Agawu (“Tonalismo como força colonizadora...”) e Benjamin [3]
"...todos os bens culturais que ele [o historiador] vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura."
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. [1987: p. 225]
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