O Ars Nova e os maestros

São muitos os maestros do Ars Nova. A frase soa inesperada quando se considera a tendência natural dos admiradores, seguidores e ex-integrantes de associar a vida do Coral à pessoa de Carlos Alberto Pinto Fonseca, seu maestro durante mais de 40 anos, cuja regência e obra deixaram uma grande marca no coro e fora dele e, sem dúvida, ainda inspiram os que o sucederam e vários dos seus contemporâneos, maestros de corais no Brasil e no exterior. 

É justo lembrar que, durante a sua já longa vida, o Ars Nova teve cinco regentes titulares que precederam o atual. O primeiro, Sérgio Magnani, conduziu o grupo desde a sua criação em 1959 até o início da próxima década, quando transmitiu a Carlos Alberto Pinto Fonseca o cargo de regente do Coral Universitário ou Coral da UEE, como também era conhecido. O maestro Carlos Alberto, autor da sugestão de mudança de nome para Coral Ars Nova, esteve oficialmente à sua frente até o ano de 2003 quando se aposentou compulsoriamente como funcionário da UFMG e repassou o cargo ao seu assistente, Rafael Grimaldi, que nele permaneceu até o seu falecimento súbito e precoce em 2008. A incumbência de conduzir o Coral foi então assumida por Willsterman Sottani, aluno da pós-graduação na Escola de Música da UFMG e autor de dissertação de Mestrado sobre o trabalho de Carlos Alberto como regente do Ars Nova. Dois anos depois, o jovem maestro teve que deixar Belo Horizonte e o Coral se viu subitamente acéfalo. Suas atividades foram interrompidas até 2013 quando voltou a funcionar sob a regência da profa. Iara Fricke Matte, principal responsável pelo seu processo de reestruturação. Em 2017 assumiu o cargo o prof. Lincoln Andrade, atual regente titular.

É interessante, no entanto, lembrar também que muitos cantores que passaram pelo Ars Nova tiveram a experiência de serem regidos por outras pessoas em trabalhos mais longos ou de curta duração – assistentes dos maestros, regentes convidados e, pontualmente, por cantores do coro com treinamento em regência. Ou ainda por regentes de outros corais em trabalhos conjuntos ou em eventos como Festivais, como foi, por exemplo, com os maestros Charles Roussin, quando titular da Orquestra Sinfônica e do Coral Lírico de Minas Gerais e com o alemão Holger Kolodziej, durante o período em que dirigiu a Orquestra Sinfônica de MG. 

Da mesma forma, alguns de nós “históricos” cultivamos até hoje a lembrança de cantar sob o comando de Robert Shaw (EUA), durante o II Festival de Corais Universitários em New York, 1969. Já os tenores dos anos 1980 gostam de se lembrar da inglesa Jane Glover, que conheceram no I World Chorus Symposium em Viena, em 1987, com a qual o Ars Nova ensaiou trechos da Missa Solemnis de Beethoven. Segundo o folclore do “GNT” (o “Glorioso Naipe dos Tenores”, na nomenclatura que criaram na época), a maestrina teria se encantado com a performance dos rapazes durante os ensaios, a ponto de querer levá-los para Londres. Um bom exemplo de que cantar sob a regência de um “estranho” pode ser uma experiência, no mínimo, interessante.

Maestros convidados

Este texto foi pensado de várias formas, com o foco na atuação de maestros que não os titulares, em trabalhos com o Ars Nova. Durante a sua elaboração, chegou a vir à mente a ideia de incluir aqueles seus membros que se tornaram regentes atuantes no Brasil e no exterior e também a dos descendentes, filhos de arsnovenses que desenvolvem trabalhos de regência, mas percebi que isso exigiria espaço e tempo difíceis de avaliar. Optei então por ficar apenas com o relato da participação de regentes convidados externos, poucos anos depois da fundação e nos primeiros 10 anos de vida do Coral. Durante esse período, o Ars Nova recebeu quatro ilustres maestros com os quais se apresentou em momentos que marcaram o início da sua história e certamente influíram na sua trajetória nos anos seguintes. 

O primeiro maestro convidado a reger o Ars Nova, então Coral Universitário, foi o mineiro Carlos Eduardo Prates que, em 21 de Abril de 1962, regeu o coro em Brasília no Teatro Dois Candangos como parte das comemorações da inauguração da Universidade de Brasília, a UnB, a convite do seu primeiro reitor, Darcy Ribeiro. Naquela ocasião, houve também uma apresentação na TV Nacional, emissora local da época. Infelizmente não pude encontrar registros, como o programa do concerto e outros detalhes da participação do Coral nesse evento tão importante da história da Universidade brasileira. A página do Arquivo Central da UnB contém as fotos da cerimônia assistida por uma grande plateia e imagens raras do Coral durante a apresentação e ao lado da mesa composta pelo jovem reitor e por autoridades representando os Três Poderes e a Igreja Católica.

Foto: Universidade de Brasília, Arquivo Central – AtoM UnB.

Natural de Belo Horizonte, Carlos Eduardo, o Caiado, como era conhecido no meio, aqui iniciou seus estudos, tendo sido aluno de Sergio Magnani (composição) e Hiram Amarante (piano). Caiado pertenceu a toda uma geração de músicos brasileiros formados por Hans-Joachim Koellreutter, com quem estudou em São Paulo, levado pelo colega Carlos Alberto Pinto Fonseca. Juntamente com Carlos Alberto e Isaac Karabitchevsky, em 1959 ajudou a fundar o Madrigal Renascentista. Em 1963, depois de conquistar o primeiro lugar no Concurso para Jovens Regentes de São Paulo, partiu para estudos na Alemanha, onde teve professores como Herbert von Karajan e Carl Ueter. Alcançou reconhecimento internacional e foi regente titular do Theatre des Westens, em Berlim. De volta ao Brasil, Carlos Eduardo Prates exerceu diversas funções, como a de regente titular da Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC e do Coral da Rádio MEC. Em Belo Horizonte, durante o governo de Tancredo Neves, foi regente da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e do Centro de Produção Lírica do Palácio das Artes. Faleceu em Outubro de 2013.

Três anos depois do maestro Prates, o Ars Nova teve como convidado Ernst-Ulrich von Kameke, regente de coro e compositor alemão, autor de obras para órgão e numerosas obras corais, organista e kantor na igreja de St. Petri, em Hamburgo durante 32 anos, além de professor de órgão na Universidade Estadual de Música e Teatro daquela cidade. Convidado a atuar como regente, palestrante e organista em vários países, von Kameke conhecia o Brasil e foi casado com a cearense Karin Krueder, com quem teve três filhos. Sua última grande obra é o Réquiem “In Tyrannos”, oratório para três coros e orquestra composto em 1994 e que celebra a resistência contra o III Reich, com base nas memórias de um tio e no desejo de capturar o horror na forma de música e texto. Em 1993, von Kameke fundou o MAS (Musik-Akademie für Senioren), uma Academia de Música para Idosos com o propósito de ensinar o poder da música sacra a pessoas de idade. Faleceu em abril de 2019, aos 93 anos. 

O Ars Nova foi regido por von Kameke em Setembro de 1965, na capela do Colégio Santa Marcelina e uma segunda vez, em Março de 1972. No programa do concerto de 1965, denominado “Concerto Espiritual”, constam peças da Renascença e do Barroco para coro a cappella ou acompanhado pela Orquestra de Câmara da UFMG, alternadas com obras para órgão executadas pelo maestro. O órgão Balbiani, vindo de Gênova por encomenda da madre superiora, diretora do Colégio e organista, fora inaugurado apenas um ano antes e é um dos três existentes em Belo Horizonte.

Henrique Morelenbaum é o nome artístico de Saul Herz Morelenbaum, maestro e professor brasileiro nascido na Polônia em 1931 e que estudou violino, viola, composição e regência na Escola de Música da UFRJ, sendo doutor em Música e professor na mesma Universidade. Conta-se que o início de sua carreira como regente ocorreu casualmente em 1959 quando, em um espetáculo onde a bailarina Margot Fonteyn era a artista principal, ele assumiu a batuta em virtude de um impedimento repentino do regente programado. Morelenbaum ocupou diversos cargos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, inclusive como regente titular do coro. Seus três filhos são musicistas e o mais conhecido deles é Jacques Morelenbaum, violoncelista, compositor, arranjador, maestro e produtor musical de formação erudita, mas com trabalhos importantes em parceria com grandes nomes da música popular brasileira como Tom Jobim e Caetano Veloso e da música internacional.

Henrique Morelenbaum trabalhou com o Ars Nova como convidado em 1966, quando atuava no coro do Theatro Municipal e o maestro Carlos Alberto encontrava-se em viagem de estudos na Itália. Em Setembro daquele ano, regeu o Coral acompanhado pela Orquestra da UFMG no auditório da Reitoria da Universidade e na igreja de Lourdes, onde apresentaram a Cantata 140 de J.S.Bach em dois concertos que ainda são lembrados pelos coristas da época. 

Ars Nova sob a regência de Henrique Morelenbaum em 1966. Foto: Acervo do Ars Nova.

Roberto Schnorrenberg, nascido em São Paulo em 1929, e morto precocemente, aos 54 anos de idade, foi regente do Collegium Musicum de São Paulo de 1964 a 1983 quando o coro obteve, nos anos de 1964 e 1965, o prêmio de melhor conjunto coral pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Era formado em História e Geografia pela USP e estudou violinoregência e composição no Brasil, aperfeiçoando-se na Alemanha. De 1955 a 1957 foi regente da Orquestra de Câmara Musika Vir, em Bruxelas. No Brasil era também conhecido como professor e coordenador dos cursos internacionais de música de Teresópolis e, especialmente, dos cursos e festivais internacionais de Música do Paraná, nos anos 60 e 70. Schnorrenberg regeu o Ars Nova em Março de 1971, em concerto em homenagem ao então governador de Minas Gerais, Rondon Pacheco, durante a inauguração do Grande Teatro do Palácio das Artes. No programa, o Gloria de Vivaldi e uma Serenata de Scarlatti.

Prates, von Kameke, Morelenbaum e Schnorrenberg, maestros renomados que contribuíram para impulsionar a trajetória do Ars Nova nos seus primeiros 10 anos de vida, fazem parte da história do Coral e nela merecem estar inscritos em um lugar especial. Depois deles a participação de outros regentes continuou ocorrendo de forma mais pontual, em épocas e contextos diversos e com o Coral em estágio mais avançado de maturidade artística, mas em momentos que certamente também ficaram na memória dos seus cantores. 

Filhos e netos

Ao longo da sua existência, membros do corpo de cantores do Ars Nova formaram-se profissionais do canto coral e regentes que hoje atuam em Belo Horizonte e outras cidades mineiras, bem como em outros estados e países. Do mesmo modo, já se sabe de filhos de arsnovenses que começam a ingressar na carreira da regência. Direta ou indiretamente inspirados e influenciados por Carlos Alberto Pinto Fonseca, seriam “maestros-filhos” e até, quem sabe, “maestros-netos” do Ars Nova esses regentes de corais de adultos e de crianças, coros comunitários independentes ou ligados a igrejas, empresas, escolas e Universidades, além de instituições apoiadas pelo Estado. Desconheço quantos sejam, ao todo. Mas sei que muitos reconhecem como foi fundamental a sua passagem pelo Ars Nova e o aprendizado que receberam do maestro Carlos Alberto, tanto para despertar quanto para consolidar a sua carreira. Penso que seria importante que um dia essa história também pudesse ser contada, assim como penso e desejo que o Ars Nova de hoje possa continuar a ser essa grande fonte, não só de vozes, mas também de novos talentos desse trabalho único de conduzi-las e de ajudar a manter, no Brasil e fora dele, o fio que as une: o da vida do canto coral. 

Ana Maria Lana, contralto

Com a valiosa colaboração de Suzana Meinberg e Márcio Veloso

Belo Horizonte, junho de 2020