O Réquiem de Durante

Otto Drechsler, alemão naturalizado brasileiro nos anos 70 e radicado no Rio de Janeiro, era engenheiro de som (produção e edição), considerado um mestre da gravação no Brasil. Até falecer, em dezembro de 2018, trabalhou para numerosos artistas da música clássica e popular no país e era conhecedor e apreciador da música lírica. Conhecia o Ars Nova há vários anos, tendo feito o trabalho de gravação da Missa Afro-Brasileira em 1989 quando, no início do ano 2000, apareceu em Belo Horizonte trazendo uma história que nos surpreendeu a todos. Junto com ela, uma fascinante proposta de trabalho.

Otto contou que, muitos anos antes, durante uma viagem à Alemanha, bisbilhotando em um sebo na cidade de Dresden encontrou as partituras, em cópias manuscritas antigas, de uma das duas Missas de Réquiem de autoria de Francesco Durante, compositor italiano do século XVIII, considerado um mestre da composição da música coral e um dos grandes nomes da música sacra do período. Quando viu o que tinha nas mãos, não teve dúvidas: comprou as partituras e as trouxe para o Brasil, guardando-as consigo durante muito tempo, pois queria ouvir e gravar aquela obra com o Ars Nova e nenhum outro coral. E mais: de acordo com ele, seria o primeiro registro mundial em gravação comercial da “Missa de Réquiem a oito vozes em Dó Menor” de Francesco Durante, escrita para cinco solistas, coro misto duplo e orquestra. 

Filho de um sacristão e cantor de igreja, Durante nasceu em 1684 em Frattamagiore, perto de Nápoles e faleceu em 1755, em Nápoles. Há poucas informações sobre sua formação de compositor e cembalista e sobre seus estudos musicais, mas afirma-se que foi aluno de Alessandro Scarlatti, o autor do “Exsultate Deo” tantas vezes cantado pelo Ars Nova. Sua carreira didática começou, aliás, em substituição ao próprio mestre no Conservatorio Sant’Onofrio, uma das tradicionais escolas de música de Nápoles. Teve discípulos famosos, entre eles Giovanni Baptista Pergolesi.  Foi um dos poucos compositores italianos a nunca compor uma ópera, mas era altamente respeitado como compositor de música sacra e como professor. Segundo alguns autores, na área da composição para coros, seu único rival foi Händel. Rousseau o considerava “le plus grand harmoniste d’Italie”. Assim, uma figura de importância na música do período barroco italiano, porém pouco conhecida em nosso meio e, até então, ausente no repertório do Ars Nova, poderia ter uma obra sua gravada por nós pela primeira vez no mundo. Desnecessário dizer que a proposta de Otto foi aceita com entusiasmo. 

As partituras foram editadas, começaram os ensaios e o trabalho de gravação foi planejado e executado por Otto e sua equipe no auditório da Fundação de Educação Artística, no ano de 2000. Se não nos falha a memória, Otto encarregou-se ainda de buscar os recursos financeiros e de contratar a empresa encarregada da finalização e da distribuição dos CDs.

O trabalho instrumental foi feito por uma orquestra de câmara formada por componentes da Orquestra MUSICOOP, com Regina Lacerda no órgão contínuo. O Ars Nova, que na ficha técnica do disco consta equivocadamente como Coral da Universidade do Estado de Minas Gerais, teve como preparadores vocais seus cantores Suely Lauar e Helcio Pereira e, como solistas, os sopranos Lilian Assumpção e Luciana Monteiro de Castro, o contralto Rita Medeiros, o tenor Marcos Thadeu e o barítono José Carlos Leal. O maestro Carlos Alberto Pinto Fonseca e seu assistente Rafael Grimaldi trabalharam com dedicação e sensibilidade, percebendo e transmitindo a beleza da obra e afirmando a importância do seu registro inédito.

Depois de finalizado em alta definição pela empresa alemã Mazur Media GmbH, em 2001 o CD foi lançado e distribuído na Alemanha como primeira gravação mundial, como consta na capa. Uma pequena parcela da tiragem foi enviada ao Brasil e todos os participantes receberam um exemplar do produto final. O resultado do registro sonoro é de alta qualidade, como se poderia esperar dessa união de competências na última parceria de trabalho do Ars Nova com Otto Drechsler.

O CD possui apresentação bem cuidada, com encarte contendo a ficha técnica (incompleta por faltarem os nomes dos coristas e dos músicos da orquestra) e um texto em inglês, alemão, francês e português sobre o compositor, a obra e os intérpretes, elaborado pelo próprio Otto com citações resumidas de um livro sobre Durante escrito por Andrea Della Corte. É interessante notar que o disco inclui uma faixa com a gravação, feita previamente, do “Magnificat” de Manuel Dias de Oliveira, compositor do período colonial brasileiro, contemporâneo de Durante. No seu texto, Otto Drechsler justifica a inclusão da peça por mostrar ser inegavelmente influenciada pelos compositores da Escola Napolitana. 

A mesma gravação encontra-se disponível em plataformas de streaming, (Spotify, Deezer), porém obtida de um relançamento da obra datado de 2008 e feito por outra empresa licenciada, com apresentação diferente da original e que se encontra à venda em uma conhecida loja virtual internacional. Um canal do YouTube com quase sete mil inscritos publicou, em 2015, um vídeo com a gravação completa onde constam os créditos principais e os mesmos dados do relançamento de 2008.

Como se pode obter em sites de busca na internet, essa Missa de Réquiem de Francesco Durante, ao que parece só veio a ser gravada novamente em 2016 pelo coro inglês Christ Church Cathedral Choir, de Oxford, que existe há 500 anos. A versão da Missa gravada por esse coro também foi transcrita a partir de uma cópia antiga – uma das mais de cinquenta que existem espalhadas pela Europa, segundo informado no site do grupo – e editada pelo seu regente atual, Stephen Darlington, sendo executada pela primeira vez para essa gravação.

O fato de ter sido apenas gravado, mas não produzido, finalizado e distribuído no Brasil provavelmente ajudou a fazer com que esse maravilhoso trabalho do Ars Nova tivesse ficado pouco conhecido no mundo da música coral no nosso país. Sua apresentação no cenário artístico de Belo Horizonte se deu em Novembro de 2002, em duas noites de concerto, no Teatro Sesiminas e no Grande Teatro do Palácio das Artes, numa bela e impactante montagem dramatizada, concebida e dirigida pelo ator Cacá Carvalho, com figurinos criados especialmente para o evento e a participação da Orquestra de Câmara do Sesiminas e de Eduardo Ribeiro no órgão positivo. O espetáculo, produzido com o patrocínio de várias empresas, foi realizado pela Associação Cultural Ítalo-Brasileira (Acibra-MG) em homenagem in memoriam ao maestro Sérgio Magnani, primeiro regente do Ars Nova, falecido em 2001 e que teria declarado que “se um dia houver uma homenagem à minha pessoa, gostaria que fosse um Réquiem”. 

Cartaz do concerto “Missa de Réquiem” no Palácio da Artes. Foto: Jaques Diogo.

Não conseguimos encontrar muitos registros desse evento que está entre os mais importantes nos últimos anos de atividade do coro, antes de sua interrupção em 2008. Mas na nossa memória certamente irão permanecer registrados aqueles momentos de rara beleza proporcionados por uma obra que, passados 300 anos, o Coral ajudou a revelar ao mundo moderno ao gravá-la pela primeira vez, depois que Otto Drechsler a encontrou e identificou com a qualidade sonora e artística do grupo. Essa é uma história que, assim como outras, o Ars Nova merece ter incluída em um lugar muito especial na sua própria história.

Ana Lana, contralto (1967 a 1971 / 2001 a 2004)

Com a ajuda do Núcleo Histórico, em especial a de Jaques Diogo, tenor (1992 a 2007)

Belo Horizonte, abril de 2020