O Ars Nova e o mundo

Concerto do Ars Nova no Philharmonic Hall, Lincoln Center, em abril de 1969

Tudo começou no final do ano de 1967. O Ars Nova ainda não completara dez anos de existência, mas era prestigiado em Minas e conhecido em várias regiões do Brasil, já tinha participado de eventos nacionais importantes e gravado o seu primeiro disco, “Missa em Aboio”. Era um coral respeitado no nosso meio, mas desconhecido no exterior, quando foi convidado a se apresentar em concerto, em um processo de seleção para o II Festival Internacional de Corais Universitários, organizado pelo Lincoln Center for the Performing Arts, em New York, EUA. O Festival que iria reunir corais universitários de quatorze países dos cinco continentes seria realizado em março/abril de 1969, com apresentações e encerramento no Philharmonic Hall, hoje Avery Fisher Hall, um dos teatros do complexo do Lincoln Center e uma das importantes salas de concerto do mundo. 

Na noite de 03 de dezembro o Ars Nova foi selecionado para representar o Brasil pelo diretor do Festival, James R. Bjorge, em concerto na igreja da Pampulha, quando apresentou a “Missa a quatro vozes (1640)” de Monteverdi e os “Sechs lieder im Freien zu singen” opus 59, as seis canções de Mendelssohn que gerações de arsnovenses adoram e que muitos, como eu, guardam até hoje na memória. Foi quando o coral viu pela primeira vez a possibilidade de se apresentar no exterior, no que seria também a primeira viagem internacional para uma grande parte de nós, cantores. Durante todo o ano de 1968 (aquele que, segundo alguns, não acabou…), trabalhamos intensamente para captar recursos e concretizar a magnífica chance de visitar os Estados Unidos e cantar em um evento que prometia ser uma experiência única, como nos relataram o maestro Afrânio Lacerda e sua esposa Edla, participantes da primeira versão do Festival, em 1965, com o Madrigal da Universidade da Bahia. 

Depois de um ano de campanha, conseguimos a quantia necessária para a viagem e, em março de 1969, voamos para New York. Começava a grande aventura que, como outras que aconteceram na vida do coral, teve momentos inesquecíveis e muitas histórias que já são parte do seu extenso imaginário. Aqui neste espaço, fico com alguns encontros, fatos e impressões que me marcaram como coralista e, em particular, como pessoa e que em mim repercutem até hoje, cinquenta anos depois.

A participação no Festival começou com uma turnê de três semanas, em viagem de ônibus por algumas cidades da região de New England, na costa leste do país, cujas Universidades estavam encarregadas de receber e hospedar os corais e de organizar concertos para as comunidades locais. Era a segunda metade do inverno no hemisfério norte. Fazia bastante frio e nevava quando tivemos a primeira parada em Oneonta, uma pequena cidade do estado de New York, onde fomos recebidos por um grupo de estudantes da Universidade Estadual que nos acolheu. Curiosos e interessados em nos conhecer e atender, eles compartilharam suas habitações na moradia estudantil, orientaram nossa movimentação dentro do campus, assistiram e aplaudiram o concerto e – para nossa surpresa e alegria – estariam presentes na nossa apresentação no Lincoln Center, quase um mês depois. Lembro-me da imagem do jovem em uniforme do exército, pronto para embarcar para o Vietnam e de alguns outros rapazes e moças com os quais nos correspondemos por cartas durante algum tempo, depois que voltamos ao Brasil. Não posso deixar de mencionar que com um deles, Claude Chaney, à época estudante de Letras e até recentemente professor da rede pública em New York, eu retomei o contato em 2009, quarenta anos depois, através das redes sociais e pude me reencontrar pessoalmente, há poucos anos.

A certa altura da turnê, paramos em Washington D.C onde cantamos em concerto na Catedral Nacional, uma grande construção em estilo gótico, juntamente com dois ou três dos dezesseis corais participantes do Festival. A renda do concerto fez parte da arrecadação de fundos para a criação da John F. Kennedy Foundation for the Performing Arts, em cuja inauguração, dois anos depois, deu-se a estreia da “Missa” de Leonard Bernstein. Sentimos que participávamos de algo importante, ao ver o senador Ted Kennedy (o irmão Bob tinha sido assassinado em junho de 1968), sentado ao lado da esposa Joan em uma das primeiras filas dos bancos da Catedral.

Na última semana, em New York, o Philharmonic Hall abriu-se para as apresentações de cada um dos dezesseis corais e para o grande concerto de encerramento do Festival. Seria muito difícil sequer tentar descrever todas as experiências vividas durante aquela semana e poder dizer quais, dentre muitas, marcaram mais a mim e aos meus colegas: se a do nosso concerto, como o único coro aplaudido de pé; se a de ouvir e entrar em contato com os excelentes corais de outros países, outras culturas; ou ainda a de ter cantado junto com eles, acompanhados pela orquestra da Julliard School e sob a regência do grande Robert Shaw, as três belas obras – o Te Deum, de Verdi, a Missa em Ré menor (Lord Nelson), de Haydn e a Sinfonia dos Salmos, de Stravinsky – no concerto de gala. Como musicista, eu diria que todas foram vivências maravilhosas, tremendamente importantes, impossíveis de serem esquecidas. 

Mas a experiência, igualmente inesquecível, que mais me marcou como pessoa e cuja lembrança até hoje me emociona foi a de um momento que não estava programado e que nos apresentou, de forma bela e tocante, o canto como forma de resistência em tempos de opressão. Um dos corais americanos presentes no Festival era o Morehouse College Glee Club, fundado em 1911, um coro masculino de afro-americanos do Altlanta University Center, na Georgia. Seus cantores já tinham se aproximado de nós brasileiros, interessados na nossa música e na nossa cultura. Da história e da cultura deles nós não sabíamos muita coisa, como vimos pouco depois.

Na noite de gala, logo após o concerto de encerramento, todos os participantes foram chamados ao saguão do teatro para uma festa de congraçamento regada a champagne – e era praticamente só o que foi servido, champagne à vontade – cujo efeito se somou à alegria que nos tomava e que queríamos expressar, celebrando, livres de tensões, aquela noite. Com alguns minutos de festa já estávamos, coralistas do mundo inteiro, cantando e dançando, quando os rapazes do Morehouse chegaram dando as mãos a todos para formar uma imensa roda e começaram a cantar e a nos mostrar como cantar “We shall overcome”, o hino de resistência da luta pelos direitos civis que já foi adotado por movimentos semelhantes ao redor do mundo. 

Morehouse College Glee Club apresentando “We shall overcome” em 2009

O Morehouse College é a alma mater de muitas comunidades afro-americanas e de líderes como Martin Luther King, Jr., morto a tiros apenas um ano antes, em abril de 1968 e em cujo funeral o Glee Club havia cantado. Durante os anos 60, seus alunos estavam ativamente envolvidos nos movimentos pelos direitos civis em Atlanta e, naquela noite no Lincoln Center, manifestaram a sua luta de uma linda forma, ao seu país e ao mundo. Tudo isso era praticamente desconhecido de nós, jovens brasileiros vivendo os anos duros da ditadura militar, em um país calado pela Censura; de fato, hoje vejo o quão pouco eu e meus colegas sabíamos sobre o “Civil Rights”, esse movimento que mudou a história dos Estados Unidos e que permanece na memória coletiva da sociedade americana. 

Não sei exatamente quantas vozes se uniram naquele canto, das seiscentas que, poucas horas antes, cantavam juntas no palco do Philharmonic Hall. Mas sei que foi assim, de mãos dadas com coralistas de quatorze países dos cinco continentes, entoando um hino de amor à liberdade, emocionados, mas talvez sem alcançar inteiramente o profundo significado daquele momento, que o Ars Nova encerrou a sua primeira experiência internacional, em uma grande festa que reuniu alguns dos melhores corais universitários de todo o mundo. 

Os anos 60 certamente acabaram. Mas, para muitos da minha geração, se alguns ecos dos seus momentos mais sombrios agora ameaçam ressoar, ainda ressoam fortes aqueles outros ecos de momentos belos como os que nós, arsnovenses da época, vivemos nessa primeira aventura fora do país. E eu, teimosamente, quero continuar acreditando que, apesar de tudo, eles vão permanecer ressoando, por muito tempo, nos nossos corações e mentes e, quem sabe, também nas nossas vozes, no nosso canto.

Coda

Pouco depois de retornarmos ao Brasil, deu-se um fato curioso. Lourdinha Melo, soprano, uma das figuras icônicas do coral, tinha uma amiga que era vidente e que contou a ela que o Ars Nova faria uma viagem internacional naquele ano de 1969. Lourdinha contou que a viagem já tinha acontecido, mas a amiga insistiu em afirmar que ainda iria acontecer. Ficamos intrigados e achamos graça na história até receber a notícia de que, em setembro, iríamos participar do Concurso Latinoamericano de Coros, em San Miguel de Tucumán, Argentina. Viajamos a Tucumán e conquistamos o 2º lugar (perdendo para o Coral do Chile), além do prêmio “Plaqueta de Oro”. Mas um dos críticos presentes ao concerto deixou escrito que o Ars Nova era o verdadeiro merecedor do 1º lugar. 

A vidente acertou e o Ars Nova, com a devida ressalva, também.

Ana Lana, contralto

Belo Horizonte, fevereiro de 2020

Ars Nova e eu

… e você, e nós, e todos nós!

Foi em 1959 que tudo começou e em abril se formalizou. Hoje eu completo 60 anos, 8 meses e 45 dias de Ars Nova. Explico: são cerca de 32 anos como membro de seu corpo coral, no naipe dos baixos (e entre este tempo alguns anos como coordenador do grupo) e 28 anos, 8 meses e 45 dias  acompanhando sua trajetória, assistindo aos seus concertos, sugerindo, aconselhando, apoiando, ajudando a transpor obstáculos, torcendo por seu sucesso, reunindo, compartilhando êxitos e fracassos, vivendo preocupações, colaborando com as possibilidades futuras, realizando encontros, enfim, vivendo dentro e fora da trajetória do grupo e ainda retornando ao seu corpo coral, junto com ex-companheiros para voltar cantar, com os jovens cantores atuais, nas inesquecíveis comemorações dos 60 anos de atividades.  

A experiência enriquecedora de participar ativamente de atividades artísticas de alto nível só se pode medir pelos benefícios auferidos para toda uma vida.  Imaginem o ganho que conseguimos com o companheirismo, a união, o trabalho, a harmonia, aceitação, a heterogeneidade de um grupo durante milhares de ensaios, reuniões, exercícios, preparação vocal, estudos, aulas e centenas de concertos, viagens, conforto e desconforto, aceitação e amizade, colaboração e respeito mútuos, além do natural cansaço e nervosismo como consequência inevitável. Tudo isto vivemos e sentimos, tendo como resultado a alegria da tarefa realizada e o orgulho de vê-la transpondo os tempos e se firmando no universo musical de seu país. Isto é possível com talento, trabalho e perseverança, reunindo mais de 450 cantores, seis maestros titulares e outros tantos auxiliares, além de maestros convidados e do trabalho administrativo, de organização e disciplina realizado pelos seus próprios integrantes. 

Impossível detalhar os milhares de episódios alegres, dramáticos e quase trágicos que ocorreram nesta trajetória, mas todos nós os sentimos e recordamos. Cantamos em cerca de 150 cidades de 18 países de três continentes. Nosso primeiro regente foi o Maestro Sérgio Magnani  que se empolgou com o entusiasmo de um grupo de jovens e que se prontificou a dirigi-los para espanto geral, quase todos egressos do coral universitário que fora extinto um ano antes. Este encontro impactante deu vida, segurança e nível artístico ao trabalho inicial.  A todo este momento inusitado, seguiu-se outro com a chegada da Europa em 1963/1964 do Maestro Carlos Alberto Pinto Fonseca, que viria a dar forma definitiva aí coral, com seu talento, entusiasmo, conhecimento e competência.

O Ars Nova fez e ainda faz história, a qual já é, desde o princípio, conhecida dos jornais, revistas, TVs, pelas gravações e pela sua participação ativa e constante em concertos, festivais e concursos.  Esta história pode ser sintetizada em alguns aspectos que podem ser contados pelas seguintes palavras: entusiasmo, trabalho, emoção, talento, competência, disciplina, organização, objetivo e apoio.

Uma história de entusiasmo de um grupo de jovens.

Uma história de muito trabalho constante e por vezes cansativo.

Uma história recheada de emoções.

Uma história baseada no talento dos regentes e dos cantores.

Uma história concretizada pela competência.

Uma história de disciplina, sem a qual nada se pode realizar.

Uma história feita com organização mantida por seus membros.

Uma história visando sempre o objetivo de realizar a melhor apresentação de uma obra musical no mais alto nível artístico.

Uma história que contou com o apoio de entidades como a UEE, no seu início e, de lá até hoje, pela UFMG, sem o qual talvez não tivéssemos conseguido este resultado.

E hoje, às vésperas de seus 61 anos de atividades e respeitando e enaltecendo todos aqueles que mantiveram viva e acesa a história e a difusão do canto coral, com seu encantamento e inconfundíveis sons dos mestres, queremos reverenciar os primeiros 45 anos que deram os elementos para a formatação dos pilares que hoje sustentam a obra que se perpetua. Agradecemos a Rafael Grimaldi, a Willlsterman Sottani, a Iara Fricke Matte e, agora, a Lincoln Andrade, manifestando todo o nosso orgulho de Arsnovenses de ontem, de hoje e de sempre. Estamos todos conectados e o fio de ligação é o Ars Nova, em que o momento de cada um está gravado indelevelmente em sua memória física e emotiva.

E, para finalizar, uma frase eu sempre digo: A gente sai do Ars Nova, mas o Ars Nova não sai da gente. 

Márcio José Veloso, baixo

Belo Horizonte, 16 de janeiro de 2020